“Kalocaína”, O Soro Da Verdade Perfeito

Olá, Perdidos! Em Kalocaína, da sueca Karin Boye, controle e vigilância totais do Estado se apresentam num processo embrionário que chegaria ao limite requintado e desesperançoso no polêmico livro que se tornou um clássico da Ficção Científica, 1984, de George Orwell. Na minha edição, Janer Cristaldo fez a tradução diretamente do sueco. 





O livro de Boye expõe a vigilância do totalitarismo quase 10 anos antes da obra de Orwell, assim como 16 anos antes de Kalocaína, Ievguêni Zamiátin criava em Nós apartamentos de vidro, onde todos podem ser observados e observar. 

Mas, a autora vai mais longe. A vigilância se expande aos pensamentos, um lugar que não consegue mais manter seguro os segredos das pessoas. 


– Espero que minha descoberta receba o nome de Kalocaína, por ter sido eu a descobri-la. 


Mas, vamos por partes. Kalocaína é uma droga de coloração verde que ao ser injetada na veia de algum transgressor, suspeito ou denunciado serve para derrubar os muros da consciência e eliminar sua força de vontade em não revelar informações, expondo possíveis pensamentos subversivos e criminosos ou, simplesmente, como em muitos casos na narrativa, sentimentos incompreensíveis e enevoados para os próprios analisados. A nova fada verde é responsável por uma tortura sem marcas físicas. Uma espécie de soro da verdade perfeito. 

A história começa com o protagonista Leo Kall, em uma cela, preso, refletindo sobre seu destino e escrevendo as primeiras linhas de suas memórias, explicando seu trabalho científico, seu casamento, seus ideais e a comunidade e de como chegou naquela situação impensável. 


Na época em que meu relato começa, eu me aproximava dos quarenta. [...] Existem poucas coisas que me digam mais sobre um homem que sua concepção de vida; se a vê como um caminho, um campo de batalha, uma árvore que cresce ou um mar tempestuoso. De minha parte, vejo-a com os olhos ingênuos de um colegial. 


Casado com Linda, com quem tem 3 filhos (2 meninas e 1 menino), ele e sua família vivem na Cidade Química nº4, uma cidade subterrânea e extremamente sufocante do autodenominado Estado Mundial. Kall é o criador da droga que recebe seu nome: Kalocaína

Compreendi que o Estado Mundial se originou após a Grande Guerra, provavelmente vários países ou regiões que se unificaram. E as cidades foram distribuídas e nomeadas de acordo com sua finalidade como Cidades Hidráulicas, Têxteis, dos Calçados, Químicas, etc. Os cidadãos têm a compreensão de que existem outras regiões habitadas no mundo, inimigas, é claro, e que o Estado Mundial está prestes a entrar em uma nova guerra. 

Todos os habitantes vivem em comunidade e são considerados cidadãos-soldados. Todos devem se sentir honrados por viver e morrer em prol do Estado Mundial. O individualismo cede seu lugar ao coletivismo e o cidadão é apenas mais uma peça para servir ao Estado. Ou seja, o Estado é tudo o que importa e o indivíduo é nada. 


Na parede, o olho e o ouvido da polícia permaneciam ativos, tanto na claridade como na escuridão. 


A vigilância dos cidadãos-soldados é feita não só pela polícia que implantou “ouvidos” e câmeras (o Olho) nas casas para inspecionar todos, mas também pelas criadas que são substituídas a cada semana e que têm por principal função relatar tudo que acontece nas famílias, formando uma espécie de Grande Irmão que ainda está engatinhando. 

Diferentemente da obra 1984, o sexo é amplamente permitido, pois a comunidade precisa de meninos que a partir dos 7 anos são enviados a acampamentos de doutrinação, afinal são eles que renovam a máquina estatal. E, assim como os meninos, as meninas também pertencem ao Estado, mas sua principal função é trabalhar e gerar novos cidadãos-soldados ou cobaias. 


– É algo que espero possa beneficiar o Estado. Um meio que fará com que todo e qualquer homem confesse seus segredos, tudo aquilo que antes o forçou a calar-se, por vergonha ou medo. 


Cartazes espalhados nas ruas e no metrô lembram que 

NINGUÉM PODE ESTAR SEGURO! QUEM ESTÁ AO TEU LADO PODE SER UM SUBVERSIVO. 

Não existe amizade real, contato humano, músicas, artes, nada além do que é necessário para lubrificar a máquina do Estado. 





Na etapa final de testes com a Kalocaína, experiências em humanos são realizadas por Kall e supervisionadas por Rissen com o ‘material’ enviado pelo Serviço Voluntário de Cobaias. É a partir dessas experiências que as mudanças, inconscientemente, começam a ser percebidas. São pequenas variações nos pensamentos, atenções em determinados detalhes que despertam um desejo de ‘algo mais’. 

Os pensamentos de Kall começam, sutilmente, a mudar e ele, defensor absoluto do Estado Mundial, culpa seu chefe, Edo Rissen, que aparentemente não se alinha com o regime. Mas, a verdade é que apesar do sucesso de sua criação, Kall se sente insatisfeito e teoriza em como poderia ser feliz. Parece que toda a repressão determinada pelo governo não suprimiu sua inveja, seu ciúme e seu individualismo. 


Em verdade minha ávida fantasia buscava no mais longínquo, no mais ignoto, algo que pudesse libertar-me do presente, ou dar-me a chave para dominá-lo. Mas eu ainda não entendia isto. 


Um novo slogan surge nos cartazes: 

PENSAMENTOS PODEM SER CONDENADOS! 

Uma nova lei é aprovada permitindo o uso da Kalocaína pela polícia, mesmo que o crime sequer tenha acontecido. O único lugar seguro acaba de ser transposto. Finalmente, o controle chegou às mentes e aos corações dos cidadãos. 

A lógica é simples. Dos pensamentos e dos sentimentos nascem as ações e as palavras e uma vez que os cidadãos-soldados pertencem ao governo, nada mais sensato do que tirar esses segredos do privado e passá-los para o Estado. Um modo eficaz de controle e terror psicológico totais para com o cidadão. Para Kall, sua pesquisa do medicamento esverdeado livraria o Estado do veneno espalhado pelos transgressores da ideologia. 

Um fato interessante é que ao final do livro lemos uma avaliação do censor responsável pelo livro que Kall começa a escrever no início da história. Diferente e revelador. 

Vale lembrar que Kalocaína foi publicado em 1940. Ele foi publicado entre os livros que, em conjunto com o livro de Boye, considero formarem uma espécie de tríade distópica original, são eles Nós (1924) e 1984 (1948), pois tratam do mesmo assunto e são muito parecidos. Talvez um tenha sido fonte para outro e a fonte para Zamiátin tenha sido a 1ª Guerra Mundial. Ou todos tenham tirado sua inspiração nas observações do ser humano ou dos acontecimentos entre 1914 e 1945 e nos fatos aterradores ocorridos nas duas Guerras Mundiais. 

Diferentemente de 1984, que considero uma história mais intensa e assustadora, ao ler Kalocaína senti que, ainda que seja só um pouquinho, a esperança e os sonhos ainda conseguem resistir de alguma forma em Kall. Pode até ser uma mera ilusão de minha parte. O mais irônico é que Kall descreve que preso “podia sentir-me mais livre que em liberdade”. É para pensar. 



 FICHA TÉCNICA 


Título: Kalocaína      
Título Original: Kallocain      
Autor: Karin Boye 
Ano: 2012 (ebook) 
Páginas: 176  
Editora: Americana  
Gênero: Ficção Científica    
Tradutor: Janer Cristaldo      
  

Conhecendo um pouco mais Karin Boye  



A autora Karin Maria Boye (1900–1941), cultuada poeta modernista sueca e antifascista, ganhou atenção internacional com o romance Kalocaína, publicado em 1940.  

Infelizmente, ao ano seguinte da publicação de Kalocaína, Karin Boye se suicidou ingerindo uma dose fatal de barbitúricos. Num debate havia declarado “eu tenho medo” talvez sobre o conteúdo de sua criação. Acho que decidiu não ter mais medo. 

Nasceu em Gotemburgo em 26 de outubro de 1900 e estudou nas universidades de Uppsala e Estocolmo. Fundou com outros poetas a revista Spektrum, obviamente dedicada à poesia, e traduziu vários poetas surrealistas, principalmente a poesia de T. S. Eliot, para o sueco. 

Boye viajava com frequência para Berlim, a fim de realizar sessões de psicanálise. Em suas viagens presenciou a ascensão da Alemanha nazista e da Rússia soviética, o que talvez a tenha inspirado a escrever seu maior sucesso. 

Deixou um ensaio, três coleções de contos, cinco coleções de poemas e cinco romances. Seu terceiro romance, Crise (1934 – Kris), trata dos conflitos que viveu entre a homossexualidade e a formação cristã. 

Após se separar do marido em 1931 formou um relacionamento de 1932 a 1941 com outra mulher a quem chamava abertamente de esposa, Margot Hanel que também se suicidou algum tempo depois de Boye, por envenenamento por gás. 






Até a próxima! 
Beijos mil! :-) 

Criss 


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