Olá, Perdidos! Desde que o ser humano tomou consciência de sua própria mortalidade, ele vem tentando burlar a morte e, assim, permanecer mais um tempinho por aqui. E o maior exemplo disso é o vampiro, vagando à noite e exibindo seus caninos longos no decorrer dos séculos em busca de revigorantes mordidas em pescoços desprotegidos. Imortalizados em lendas há centenas de anos, os perpetuamente famintos vampiros se recusam a aceitar o fim, batendo asas numa busca eterna por sangue, a essência vital das criaturas vivas. E foi Carmilla, A Vampira De Karnstein, de Sheridan Le Fanu, a jovem que, vinte e seis anos antes de Drácula, o consagrado vampirão ♥, definiu o rumo da literatura vampírica.
A história é narrada por Laura, jovem de 19 anos, que perdeu a mãe ainda pequena e que mora com o pai e duas governantas, Madame Perrodon e Mademoiselle De Lafontaine, num castelo na remota e pitoresca Estíria, região do Império Austro-Húngaro.
Morando num local isolado, Laura espera ansiosamente pela chegada da jovem Bertha Rheinfeldt, sobrinha do General Spielsdorf, velho amigo de seu pai. Ao invés da hóspede, chega uma carta explicando que Bertha havia morrido, mas assegurando a visita do General para breve, a fim de esclarecer tudo pessoalmente, com mais detalhes.
Todos ficam horrorizados com as notícias na carta e Laura se sente triste por perder sua amiga em potencial, até que, em uma noite de lua cheia, ela e seu pai presenciam um acidente de carruagem às portas do castelo e socorrem seus integrantes. Entre as vítimas do acidente está uma jovem que fica incapacitada de seguir viagem e é levada ao castelo até que se recupere. A tão desejada amiga entra em sua vida e ela se chama Carmilla.
Ter Carmilla em seu lar parece um presente divino e escrito nas estrelas. Laura lembra que aos seis anos teve um sonho estranho com sua bela e lânguida visitante, o que cria laços fortíssimos entre as duas.
Não só a amizade como a atração entre as jovens cresce e se fortalece na mesma proporção que a fraqueza de Laura se torna cada vez mais evidente e preocupante. Enquanto isso, súbitas e misteriosas mortes acontecem na região. A partir daí, os eventos se desenrolam para um final bem interessante.
O amor tem seus sacrifícios, e não há sacrifício sem sangue.
Não se pode falar em criaturas da noite e não mencionar os vampiros. O mito nasceu há centenas de anos e sem um ponto de origem conhecido. Mas, seu lugar cativo na literatura teve início em 1819 quando o inglês John Polidori apresentou The Vampyre ao mundo.
O irlandês Le Fanu se inspira em diversas fontes, desde o folclore sobre mortos-vivos ou desmortos e tratados de monges beneditinos até as obras de Polidori (esse aí de cima), Dumas e Aleksey Konstantinovich Tolstoy, todos seus contemporâneos. Ele pega o que têm de melhor sobre vampiros, salpica com suas ideias próprias, junta e mistura tudo e voilà... nasce das sombras Carmilla, a Vampira de Karnstein.
Carmilla ataca a adormecida Bertha, Ilustração do The Dark Blue de D. H. Friston, 1872 (modificada por PNLC) |
O autor inova o mito e emprega a lenda do vampiro agitando e achincalhando a sociedade reprimida da Era Vitoriana. Ao invés de um homem, ele nos envolve com a malícia e a sedução de uma mulher. Seu conto foi publicado pela primeira vez como folhetim na revista londrina The Dark Blue entre os anos 1871 e 1872, fato que fez a revista ficar eternizada na história da ficção de vampiros. Em pleno meados do século XIX o autor meio que disfarçou o alto teor sexual lésbico que permeia sua história. Muito ousado, não acha?
A ingênua Laura se sente atraída por Carmilla e todas as manifestações de desejo não passam de carinhos e beijos esperados com ansiedade, porém contidos em seus sonhos. A sutileza das intenções prevalece ao fato consumado.
Com um olhar de cobiça, ela me puxava para si, e seus lábios cálidos me enchiam a face de beijos, para em seguida sussurrar, quase em pranto: ‘Você é minha, e será sempre minha, você e eu somos uma para sempre.’
Vivendo numa cultura onde o sexo era um costume controlado pela religião, que naquela época provocava um temor real, aqui a femme fatale de Le Fanu se apresenta como uma vampira. E, embora possam dizer que o livro tem uma forte apologia ao homoerotismo, nele Carmilla é símbolo do livre-arbítrio das mulheres e de sua paixão incontida em contraponto à moral opressora da sociedade vitoriana do Reino Unido, cujo sexo era objeto de repulsa social e a castidade era um exemplo de virtude a ser mantida a todo custo.
Carmilla - Mobile Legends - Shadow of Twilight (Sombra do Crepúsculo) |
O terror, além do óbvio sedutor-chupa-sangue-até-a-morte, está justamente nesse apelo psicológico dos desejos reprimidos e incertezas adolescentes, afinal Laura não entende esses sentimentos que despertam dentro dela. E Carmilla, a predadora lapidada em anos de existência, se aproveita da jovem, física e espiritualmente, e sabe que essa atração romântica que sente por Laura será sua destruição.
Aproxima-se o momento em que saberá de tudo. Vai me achar cruel, egoísta, mas o amor sempre é egoísta. E quanto mais ardente, mais egoísta. Não pode imaginar como sou ciumenta. Você deve me amar e juntar-se a mim na morte, ou odiar-me e da mesma forma me acompanhar, odiando-me na morte e além dela. A indiferença não existe em minha aparência apática.
Esse comportamento libidinoso de Carmilla marcou e influenciou o vampiro Drácula, de Bram Stoker, outro irlandês encantado pelo gótico e marcas de dentes em pescoços desnudos. Tem muita coisa que Drácula sorveu (oops!) de Carmilla, se me permite o trocadilho infame, é claro:
- a misteriosa doença que acomete a vizinhança;
- o sonambulismo;
- os sonhos estranhos;
- manifestar-se em forma animal (“era um animal negro, semelhante a um gato monstruoso”);
- as estacas;
- as decapitações;
- o especialista do sobrenatural “que investia contra as ‘artes infernais’”, referência a Van Helsing, o caçador de vampiros;
- os anagramas, tão irresistíveis aos vampiros;
- gozar dos hábitos noturnos, sem se privar da vida diurna, momento sem manifestações de suas habilidades;
- emanar uma fascinação arrebatadora sobre suas escolhidas.
Achei muito curioso e genial Le Fanu incluir no Prólogo uma explicação sobre a narrativa que, na verdade, seria uma declaração documental bastante detalhada, parte de um livro do Dr. Hesselius, médico nada ortodoxo e uma espécie de primeiro detetive oculto da literatura, atribuindo total veracidade à história e tornando-a mais aterrorizante. Segundo o ilustre doutor trata-se de um relato para “despertar o interesse dos ‘leigos’”. E se ainda hoje despertou, imagina naquela época.
Carmilla, de Castlevania - série anime da Netflix |
Do século XIX para o século XXI não há muita surpresa que provoque terror ao ler a história da vampira de Karnstein. Vampiros aparecem a todo instante em filmes, séries, músicas, HQ’s, games e livros e já conhecemos muito bem a fórmula, escrita e reescrita milhares de vezes, seguida pelos vampiros nos tempos atuais.
É horrível que continuem, depois de mortos, a atormentar a raça humana com seus apetites hediondos.
Embora seja uma história curtinha, o que achei uma infelicidade, tornou-se um marco que abriu o caminho para os chupadores de sangue que tanto amamos como Drácula ♥.
Sem dúvida, é e foi extremamente gratificante ler Carmilla, onde o encantamento pelo proibido e o despertar da maturidade são revelados em cenários góticos, com seus castelos, vilarejos e o sobrenatural, tão presentes nas histórias vampirescas. O tempo passa, mas Carmilla continua nos desafiando com questões muito atuais sobre gênero, sexualidade e poder.
Que tal saciar a curiosidade e assistir uma das centenas de adaptações feitas de Carmilla em filme.
FICHA TÉCNICA
Título: Carmilla, A Vampira De Karnstein
Título Original: Carmilla
Autor: Sheridan Le Fanu
Ano: 2018
Páginas: 96
Editora: Via Leitura
Gênero: Ficção / Vampiros
Tradutores: Martha Angel e Humberto Moura Neto
AUTOR
Joseph Thomas Sheridan Le Fanu, ou simplesmente, Sheridan Le Fanu nasceu em 28 de agosto de 1814 em Dublin, Irlanda. Foi um escritor de contos góticos e romances de mistério e o primeiro a escrever e publicar histórias de terror no século XIX, em plena Era Vitoriana.
Estudou Direito no Trinity College, onde foi eleito auditor da College Historical Society. Em 1838, The Ghost and the Bone- Setter, sua primeira história, foi publicada no Dublin University Magazine, da qual anos mais tarde se tornaria editor e proprietário, em 1861.
Após experimentar diversos gêneros literários ficou mais conhecido pelas histórias de horror e mistério.
Uncle Silas, de 1864, é considerado seu principal romance gótico. In A Glass Darkly, de 1872, é uma coleção de cinco contos de terror, entre eles Green Tea, The Room In The Dragon Volant e o da famosa vampira Carmilla.
Le Fanu morreu em Dublin a 7 de fevereiro de 1873, aos 58 anos. Em sua homenagem, existe uma rua em Ballyfermot, subúrbio de Dublin, com o seu nome.
Até a próxima!
Beijos mil! :-)
Criss
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