Olá, Perdidos! Consegue imaginar a ceia de Natal sem seu prato principal, o peru assado, tradicionalmente recheado com farofa e especialmente decorado para a festa? Difícil, né? Mas é o que acontecia na casa da família de Juca. O conto O Peru de Natal, de Mário de Andrade, mostra quão importante se tornou este prato numa família abalada pelo luto de seu patriarca.
Uma família católica se reúne no primeiro Natal após a morte de seu patriarca, ocorrida há cinco meses. Uma família sem dificuldades financeiras, honesta e feliz que ainda se vê atrelada aos costumes do falecido que era deveras econômico e não cedia às emoções que os prazeres da vida podiam proporcionar, principalmente nas comemorações de fim de ano. Era “o puro-sangue dos desmancha prazeres”.
E Juca, filho do morto, se aproveita da fama de “é doido, coitado!” que todos os familiares lhe imputaram para mudar isso. Da reles ceia regada a castanhas, figos e passas após a Missa do Galo, típica de seu pai, ele decide que nesta ceia todos vão comer o tão famoso peru que a parentada saboreava nos aniversários quando tradicionalmente a ave dava as caras em sua casa. Mas desta vez só eles iriam desfrutar do espécime tão bem preparado por suas três mães (sua mãe, uma tia que morava com eles e sua irmã).
Finalmente uma ceia que a família merece e sem as mesquinharias de seu pai. É claro que o chororô pela lembrança do falecido tentou acinzentar o belo momento para tirar os holofotes do prato principal. Com a presença prejudicial do pai empenhado em diluir o bem-estar de todos, Juca tem uma atitude extremamente política em favor da família e a contragosto toma partido do pai, transformando-o em santo, dizendo que com certeza ele está contente em ver todos reunidos.
Será que a estratégia de Juca dará resultado?
[...] eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de “louco”. “É doido, coitado!” falavam.
É o que Juca, narrador da história e também seu protagonista, tenta responder no decorrer do conto ao relembrar e analisar o caráter e a personalidade do pai falecido e o ambiente familiar de hipocrisia em que viviam regido por esse homem inflexível e seco.
Uma casa tradicional e conservadora, totalmente patriarcal, onde pai/marido decide a composição da família que tem que se contentar e concordar com suas ordens e seus gostos.
Nos detalhes dá para sentir que a mediocridade do pai não permitia servir um peru vestido de festa na intimidade do lar, para sua esposa e filhos, e todos deviam ficar “empanturrados de castanhas e monotonias”. Contudo não se negava a demonstrar sua suposta opulência nos aniversários repletos de parentes convidados para comer o “peru, as empadinhas e os doces” da festa. Parece que manter as aparências era o mais importante. Para sua família, “peru resto de festa”.
Começa a guerra entre os mortos.
Juca é doido, coitado! se empenha em fazer a família esquecer ritos antigos e ultrapassados impostos pelo pai e oferece à suas amadas três mães a possibilidade de um peru de Natal para a ceia. Todos acham graça em sua sugestão e culpando o é doido, coitado! se sentem livres da obrigação do luto e de seguir os ditames do falecido.
Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a ideia de fazer uma das minhas chamadas “loucuras”. Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar.
Juca representa a mudança e a modernidade e o peru simboliza o fim da presença do patriarca da família que ainda tenta intervir na “felicidade gustativa” e no “aproveitamento da vida”, algo impossível com ele vivo.
Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal.
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O Peru de Natal - Jornal de Noticias 25 de dezembro de 1949 |
Como curiosidade, O Peru de Natal foi publicado pela primeira vez em 25 de dezembro de 1938 no 1º Suplemento do Diário de Notícias do Rio de Janeiro. Mais tarde, o texto foi retrabalhado pelo próprio autor e em 1942 foi reproduzido na Revista da Academia Paulista de Letras e, posteriormente, na obra póstuma Contos Novos, de 1947.
O conto é curtinho, superbém escrito, cheio de simbolismos e muito divertido. É ler para de imediato simpatizar com Juca e suas três mães. Dá até para sentir o aroma do peru envolvendo todos, fazendo renascer a comunhão, a ternura e o amor familiar ocultados pela natureza sem lirismo do pai.
FICHA TÉCNICA
Título: O Peru de Natal (conto)
Título Original: O Melhor de Mário de Andrade
Autor: Mário de Andrade
Ano: 2015
Páginas: 128
Editora: Nova Fronteira
Gênero: Antologia de Contos e Crônicas
AUTOR
Mário Raul Morais de Andrade ou, simplesmente, Mário de Andrade nasceu em São Paulo em 9 de outubro de 1893.
Com uma mente sedenta por conhecimento, ele foi autodidata em estudos literários, especialmente poesia, e História. Pianista prodígio, começou de criança seus estudos e se aperfeiçoou no Conservatório Musical de São Paulo, onde tornou-se catedrático de História da Música.
Em 1917, publicou seu primeiro livro, sob o pseudônimo de Mário Sobral, intitulado Há Uma Gota de Sangue Em Cada Poema, um ensaio para a Semana de Arte Moderna de São Paulo de 1922, movimento que mudaria as bases da arte brasileira.
Pauliceia Desvairada, publicada justamente em 1922, com várias inovações formais, o consolidaram como um dos maiores poetas da literatura do Brasil.
O Mário romancista estreou com Amar, Verbo Intransitivo (1927), livro criticado pela intelectualidade tradicional que estranhou a temática ousada e censurou certo desrespeito às regras gramaticais.
Macunaíma, O Herói Sem Nenhum Caráter, de 1928, foi o marco do modernismo brasileiro com o experimentalismo de linguagem, misturando linguagem oral e popular e folclore, lendas, mitos e manifestações religiosas de vários locais do Brasil, como uma unidade nacional.
Ele foi poeta, contista, romancista, ensaísta, fotógrafo, musicólogo, cronista, esteta, epistológrafo, crítico de artes, de literatura, além de folclorista. Foi um dos pioneiros da poesia moderna brasileira exercendo grande influência na literatura moderna brasileira e um vanguardista no campo da etnomusicologia. Sua influência transcendeu as fronteiras do Brasil.
Em São Paulo no dia 25 de fevereiro de 1945, aos 51 anos, Mário de Andrade morreu devido a um enfarte do miocárdio e deixou mais de vinte livros publicados.
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