“As Mil Noites” No Deserto

Perdidas e Perdidos, cuidado! Lá vem ele, Lo-Melkhiin e sua caravana em busca de uma nova esposa que será a rainha de seu reino. Mais uma esposa. De novo. Assim As Mil Noites, livro de E. K. Johnston, se desenrola nas areias do deserto. 




Lo-Melkhiin vai casar e todos sabem que o reinado de sua nova rainha, provavelmente não passará da noite de núpcias, se tiver sorte (ou não) sobreviverá até ver o dia amanhecer. Mas, uma coisa é certa: mais cedo ou mais tarde ela morrerá. E assim lá se vão trezentos casamentos e trezentas noivas mortas misteriosamente. E ele não tem intenção nenhuma de parar de condenar outras tantas mulheres à morte.

Preso a uma nova rota estipulada em lei, Lo-Melkhiin segue de aldeia em aldeia para escolher uma esposa. Essa rota foi criada para que o soberano passe por todas as aldeias, distritos ou acampamentos antes de retornar à primeira aldeia e assim começar tudo de novo. Uma situação angustiante, mas que dará chance para as mulheres de se casarem e, com isso, impedir de serem levadas por ele quando visitar a mesma aldeia outra vez. 

Agora, Lo-Melkhiin chegou a um acampamento no deserto e quer levar a mais bela de suas mulheres. Mas, uma garota não permitirá que ele leve sua irmã (justamente a mais bela) e tome sua vida. Nem que para isso ela tenha que forçar sua escolha a Lo-Melkhiin para depois morrer em seu lugar. E é exatamente o que ela faz. Então a garota veste o dishdashah (túnica) roxo de sua irmã, faz uma trança, se pinta, se enfeita e se coloca na frente do governante, totalmente deslumbrante. Seu plano dá certo e a garota é levada ao invés de sua bela irmã e, surpreendentemente, sobrevive a sua primeira noite no qasr, na fortaleza do sultão. 

Aquilo era algo que Lo-Melkhiin não podia comprar, não podia copiar e não podia roubar. Senti uma grande paz ao ver tudo aquilo, e também esperança. 

A medida que a história avança ficamos sabendo que após uma ida ao deserto para caçar, Lo-Melkhiin retorna ao palácio mudado. Diferente e com uma maldade latente, ele se torna um líder temido e assassino de suas noivas. Contudo ele tem suas crueldades absolvidas, tem seus atos vis justificados pelos seus próprios súditos, uma vez que, de negociantes a céticos (cientistas), todos na cidade prosperam. Talvez todos eles considerem que a morte de trezentas mulheres seja um preço pequeno a pagar pela paz e prosperidade da vila e seus cidadãos. 




Mas, sua última esposa é diferente das anteriores e possui algo que a mantém viva, aguçando a curiosidade do soberano. E, assim como ele, a garota também percebe que aos poucos surge um poder tão inesperado quanto incompreensível e que se torna cada vez maior, uma magia que flui entre ela e Lo-Melkhiin. Suas histórias. Sim suas palavras parecem ganhar vida própria. Talvez ela consiga ter força e magia suficientes para libertar as mulheres do pesadelo de se tornarem futuras rainhas de Lo-Melkhiin e, quem sabe resgatar o homem bom que o soberano já foi um dia. E, assim, com as verdades que ela inventa, a garota vai sobrevivendo até a manhã seguinte. Algo inteiramente inédito para ele e todo o seu reino. 

Ela não pertencia ao meu povo, mas possuía um poder que não era humano, não exatamente. Ela não morreu, e me perguntei se eu poderia finalmente ter encontrado uma rainha por quem eu atearia fogo ao deserto.  

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As Mil Noites pode até lembrar os contos do clássico da literatura As Mil & Uma Noites que a rainha persa Sherazade costumava narrar noite após noite para sobreviver a um rei tirano, parando bem no clímax. Ao estilo “Continua...”. Hahahahahaha! Mas essa história é um pouquinho diferente. 

E. K. Johnston fez uma releitura do clássico, criando um livro e uma história novos. Sua narrativa é sobre poderes, duelos e batalhas no deserto. A luta para libertar não só sua aldeia, mas um povo, principalmente suas mulheres, e, quem sabe, como bônus salvar a alma do soberano. Tudo isso numa única trama cheia de magia. E tudo é muito bem detalhado, o que praticamente nos faz sentir na pele a textura e os perigos existentes nas areias escaldantes do deserto. 

– O deserto não gosta que zombem dele – falei. – E sempre cobrará um preço no final. 

Se busca romance, esqueça. O que é uma pena! 

O Amor aqui é o amor da garota pela sua família e de seus entes queridos por ela, além da gratidão de todas as outras famílias da tribo onde ela vivia e para quem eles oram todos os dias, transformando-a em uma “deusa menor” (membro da família ou da tribo que morreu e que os protegem). 

Uma coisa incomum é que na narrativa não há muito o uso de nomes; se chamam por irmã, mãe de minha irmã, esposa, meu senhor, senhora da hena, pai do meu coração, senhora mãe e por aí vai. O fato da maioria não ter nome, exceto Lo-Melkhiin e alguns poucos personagens, não dificulta em nada a leitura. Para dizer a verdade, sequer dá para perceber que a própria garota não possui nome. 




– O deserto cria pessoas fortes – disse ela. 

Há algumas palavras no meio da história em árabe como qasr, dishdashah, mas que não atrapalham a narrativa ou o seu entendimento. Muito pelo contrário, dão um charme a mais ao texto escrito nas areias do deserto. Um encanto extra. 

O livro é cheio de mistérios. O poder da palavra, seja em forma de contos ou orações é o mistério que o governante não consegue alcançar. E, embora as mulheres daquela região não tenham voz de comando e seus desejos sejam ignorados, é através de seus sussurros e suas conversas serenas de contadoras de histórias que pequenas batalhas diárias são vencidas. E, por que não grandes batalhas? 

O sobrenatural e a magia, além das crenças nos “deuses menores” das tribos, ditam o verdadeiro tom da história, cujos personagens realmente não precisam de nomes, pois poderiam ser qualquer um. O mais importante aqui é preservar a história e a moral por trás dessa história que embora mantenha seu teor original, modifica-se de acordo com as necessidades de quem a conta. Assim como Sherazade que um dia se apossou de inúmeras fábulas para se manter viva e apaziguar um coração impiedoso. 

– Você ainda não entendeu, estrela dos meus céus? – disse ele, sibilando no meu ouvido. Eu não via o rosto de um homem, mas o capelo de uma víbora. – Nós somos iguais, você e eu. É por isso que não posso matá-la, e é por isso que você não morre. 

Uma coisa interessante é que passamos a conhecer um pouco mais os costumes e as tradições bem diferentes da cultura ocidental, mesmo sendo de outra época. São outros tempos e outro povo com seus comportamentos, costumes e crenças onde as mulheres não tinham voz ativa. Talvez nem seja um tempo tão distante assim. A hipocrisia, o medo e a comodidade gananciosa ainda fazem com que as pessoas sequer se sintam mal com várias situações desprezíveis, humilhantes e fatais que atingem as mulheres nos dias de hoje. A prosperidade, com certeza, não chegará a elas, assim como não chegou às noivas de Lo-Melkhiin. O curioso é que as maiores vítimas de As Mil Noites são as mulheres e quem se dispôs a salvar todos foi, exatamente, uma mulher

Gostei do livro. Trata-se de uma história leve e fácil de ser lida. Achei a narrativa simpática e diferente que mistura magia e crenças entre lembranças do passado e histórias do presente reinventadas para criar um belo Conto das Arábias





FICHA TÉCNICA

Título: As Mil Noites    
Título Original: A Thousand Nights     
Autor: E. K. Johnston    
Ano: 2016   
Páginas: 320   
Editora: Intrínseca   
Gênero: Ficção    
Tradutor: Viviane Diniz     



AUTOR 


Emily Kate Johnston ou E. K. Johnston é arqueóloga forense, livreira e escritora. 

Já morou em vários lugares ao redor do mundo, incluindo a Jordânia, onde ficou apaixonada pelos segredos do deserto. E, se ela aprendeu algo é que “as coisas ficam estranhas às vezes e não há muita coisa que você possa fazer sobre isso”. 

Quando ela não está no Tumblr, ela sonha com viagens e com Tolkien e, dependendo da situação, escreve livros. Sua inspiração para escrever vem do seu trabalho, das viagens que fez e de sua especialização em árabe e hebraico bíblico. Além do livro As Mil Noites, Johnston também escreveu Star Wars Ahsoka, um romance para jovens adultos no mundo sempre em expansão de Guerra Nas EstrelasEla adora contar histórias




Até a próxima! 

Beijos mil! :-) 
Criss 




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