Mergulhe No Mundo De "A Menina Submersa: Memórias"

Como disse Neil Gaiman “poucos escrevem como Caitlín” e é verdade. A Menina Submersa: Memórias, da irlandesa Caitlín R. Kiernan, retrata os caminhos tortuosos e obscuros da mente esquizofrênica de uma garota chamada India Morgan Phelps ou, simplesmente, Imp. 






Conhecemos Imp sentada diante de uma velha máquina de escrever datilografando as primeiras linhas de sua história de fantasmas. É isso mesmo! Ela está escrevendo um livro dentro do livro que estamos lendo. E esse livro é sobre fantasmas, sereias e lobos. E como ela não tem o hábito de escrever, afinal ela é pintora e quase vive de suas telas, o início é um pouco confuso – não segue uma narrativa linear e, às vezes, ficamos desorientados. Mas, após alguns pitacos dela com ela mesmo (!), acaba encontrando seu jeito particular de escrever.  

‘Vou escrever uma história de fantasmas agora’, ela datilografou. ‘Uma história de fantasmas com uma sereia e um lobo’, datilografou mais uma vez. Eu também datilografei. 

Sua história de fantasmas é uma espécie de resgate de si mesma, para trazer à consciência a verdade sobre alguns fatos ocorridos e conseguir organizar seus pensamentos de forma tangível, além do bônus de poder se libertar dos tais fantasmas. Através de suas memórias (as quais ela está escrevendo), ela tenta entender o que aconteceu com sua avó Rosemary e sua mãe Caroline que se suicidaram para escapar das garras da loucura; ou com a relação com sua namorada Abalyn (uma garota transgênero); ou com uma mulher pra lá de misteriosa que ela encontrou nua parada ao lado da rodovia no meio do nada chamada Eva Canning. Há também as obras “A Menina Submersa”, de Phillip George Saltonstall e “Fecunda Ratis”, de Albert Perrault que impactaram Imp de forma avassaladora em diferentes ocasiões de sua vida. Além da doença hereditária que também a atormenta. Todos esses são seus fantasmas, cada um a seu modo ou todos do mesmo modo. 

Assombrações são memes, em particular, transmissões de ideias perniciosas, doenças contagiosas sociais que não precisam de hospedeiro viral nem bacteriano e são transmitidas de milhares modos diferentes. 

Trata-se de um livro bem perturbador e o único ponto de vista que conhecemos é o da própria Imp, com seus pensamentos e memórias duvidosos, pois sua credibilidade é afetada pela doença. Somos jogados sem paraquedas nas entranhas de sua mente caótica. Tudo é subjetivo. O que é verdade para ela e o que é verdade para todos a sua volta? Se é que a verdade exista única, impessoal e imparcial ou... e isso importa? Muitas informações não parecem ser tão factuais assim e ela mesma percebe isso. Ela nos lembra muitas vezes que não sabe se algo aconteceu daquele jeito ou se foi bem parecido e que poderia ter realmente sido daquele jeito. Caminhamos em meio a neblina sem ter certeza de onde estamos ou para onde vamos. E, assim, fascinados por sua história, acompanhamos Imp. 

Um dos pontos altos e que me impressionou muito pela total confusão das emoções e eventos ocorre quando, em meio a tantas dúvidas, Imp resolve ela mesmo se libertar para descobrir a tal verdade por trás dos véus que sua medicação constrói em sua mente. Quando nossa decidida protagonista para de tomar os remédios, descobrimos quem Imp é de fato, através da paranoia imposta por sua esquizofrenia, com suas lembranças distorcidas e seus devaneios com lobos e fantasmas. Liberdade. Anarquia. Ela segue o canto da sereia e mergulha no mar revolto de sua mente. Pois, só ficando submerso é possível descortinar a verdadeira Eva Canning. Mas seria a Eva de Julho ou a Eva de Novembro? 

Fantasmas são essas lembranças fortes demais para serem esquecidas, ecoando ao longo dos anos e se recusando a serem apagados pelo tempo.  

Em sua mente esquizofrênica, nos perdemos e nos encontramos e nos confundimos e observamos e surtamos. Juntamente com Imp desvendamos mistérios e aceitamos as possíveis verdades e a relevância imaculada do número sete. Relevância do número sete? Número sagrado contra as sementes de mostarda! Tudo tem que ser feito para que Imp consiga nos mostrar e mostrar a si mesma o desfecho de sua surpreendente história de fantasmas. Parece loucura? Bem-vindo ao mundo de Imp. 


No sentido horário: L’Inconnue de la Seine / Floresta Aokigahara no Japão / Chapéuzinho Vermelho e o Lobo / A Menina Submersa / Fecunda Ratis 


A normalidade é um comprimido amargo do qual reclamamos. 

E, eis que outra personagem vem ao salvamento. Se não fosse Abalyn, sua namorada, ter entrado à força em seu apartamento e resgatado Imp, encurralada em uma esquina do quarto por seu surto, sua verdade teria sido silenciada. Quantas vezes ouvimos o canto da sereia nos chamando para o caos? Com Imp, aprendemos que é preciso submergir em águas frias para voltarmos à tona e podermos seguir em frente. Talvez mais fortes, talvez sem fantasmas! 

Sereias são pensamentos intrusos que até homens e mulheres lúcidos têm. Você pode chamá-los de sereias ou de assombrações. Não importa. Depois que Odisseu ouviu as sereias, duvido que ele tenha esquecido a canção. Ele teria sido assombrado por ela durante o resto da vida. Mesmo depois da terrível jornada de vinte anos, da competição de arco e flecha, mesmo depois de ter Penélope de volta e de a história ter um ‘final’ feliz, ele ainda deve ter sido assombrado pela canção, nos sonhos e quando estava acordado. Ele sempre via o mar ou o céu.  

Mas, aqui nada é o que parece ser. Até Saltonstall com sua “Menina Submersa” e Perrault com sua “Fecunda Ratis”, que impressionaram tanto Imp, são invenções. Mas, invenções criadas por quem? Caitlín que escreveu esta história fabulosa sobre uma garota esquizofrênica ou Imp, a garota esquizofrênica que tenta organizar sua mente com a sua história de fantasmas? E eis que a verdade finalmente aparece e nos mostra a incontestável face do horror. Esse é o verdadeiro fantasma. E não pertence só a Imp. Pertence a todos. A mente pregando peças, sendo traiçoeira e achincalhando nossa perspectiva. O medo de não poder acreditar no que viu ou vê; naquilo que sabe que é realmente verdade ou que talvez não seja tão verdade assim; lembranças certeiras ou memórias erráticas; uma mente sã num corpo são ou a fraqueza e falhas de uma mente num corpo que não se mostra tão são assim. Isso é o que assusta!  

Nenhuma história tem começo e nenhuma história tem fim. Começos e fins podem ser entendidos como algo que serve a um propósito, a uma intenção momentânea e provisória, mas são, em sua natureza fundamental, arbitrários e existem apenas como uma ideia conveniente na mente humana.  

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Vale a pena e muito ler o perturbador e sombrio A Menina Submersa: Memórias. Li o livro em dois dias ou menos. E apesar de ter lido e relido alguns trechos “um pouco confusos” posso garantir que se trata de uma experiência que é tão fascinante quanto desconcertante. Isso não alterou em nada a excelência da escrita de Caitlín, pelo contrário, mostra como sua narrativa é profunda. Sem perceber imergimos nesse caleidoscópio de imagens no momento em que nos aventuramos a ler sua história de fantasmas com uma sereia e um lobo e uma garota esquizofrênica. Deixe sua zona de conforto para trás e mergulhe de cabeça, mas tenha cuidado... é surreal! 



FICHA TÉCNICA

Título: A Menina Submersa: Memórias (brochura
Título Original: The Drowning Girl 
Autor: Caitlín R. Kiernan 
Ano: 2014
Páginas: 320 
Editora: DarkSide 
Gênero: Thriller Psicológico 
Tradutores: Ana Resende e Carolina Caires Coelho 


AUTOR 




Caitlín Rebekah Kiernan (ou Caitlín R. Kiernan) nasceu em Dublin, na Irlanda, em 26 de maio de 1964. Ainda criança, mudou-se com sua mãe para o Alabama, nos Estados Unidos e seus interesses durante a infância e a adolescência foram paleontologia (que estuda a vida e o desenvolvimento do passado da Terra), herpetologia (estudo dedicado aos répteis e anfíbios) e escrita de ficção. Chegou inclusive a trabalhar na área durante um tempo. 

Hoje, é uma autora de ficção e fantasia sombria, ganhadora de vários prêmios, principalmente o Bram Stoker Award, considerado o mais importante prêmio da literatura de terror. 

Caitlín é declaradamente assumida transexual, lésbica e pagã. 


Até a próxima!

Beijos mil! :-)
Criss 


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